21 de jul. de 2014

Risco à paz mundial - Veja

RÚSSIA – CRIMES CONTRA A HUMANIDADE
Risco à paz mundial
O presidente russo Vladimir Putin empurra o mundo para o limiar de um conflito bélico ao financiar separatistas no leste da Ucrânia. Seus comandados abateram um avião com 298 a bordo

Foto: Reuters

"Putin estava feliz no Brasil. Ele está claramente usando a América Latina como uma frente contra os Estados Unidos", diz a cientista política ucraniana Lilia Shevtsova

Postado por Toinho de Passira
Reportagem de Duda Teixeira, Nathalia Watkins, Carlo Cauti, Raquel Beer, Leonardo Motta e Valeria Bretas
Fonte: Veja

Grandes guerras começam por motivos bem menos graves do que a derrubada de um avião civil com 298 pessoas a bordo, como ocorreu na semana passada nos céus da Ucrânia. Todos os indícios levantados até agora apontam para milicianos separatistas treinados e monitorados por tropas russas. Eles têm domínio territorial sobre a área de onde, como comprovam fotos de satélites, decolou o míssil supersônico que atingiu em cheio o Boeing 777 da Malaysia Airlines — a mesma companhia que há meses teve um jato idêntico misteriosamente desaparecido nas águas do Oceano Índico.

Grandes guerras começam também por agressões desse tipo, muitas vezes feitas por acidente ou engano. Pode ser essa a explicação para o ataque fatal ao avião da Malaysia Airlines que fazia o voo MH17, de Amsterdã a Kuala Lumpur. Desde que se apoderaram de baterias de mísseis antiaéreos Buk, de fabricação russa, e foram treinados para usá-los por monitores enviados por Moscou, os separatistas vinham tendo crescente sucesso em derrubar aviões inimigos naquela região. Cada disparo certeiro era comemorado em russo nas redes sociais frequentadas pelos separatistas.

Foto: Dmitry Lovetsky / Associated Press

Carros de bombeiros chegar ao local do acidente de um avião de passageiros perto da aldeia de Hrabove, Ucrânia, como o sol se põe 17 de julho.

Na quinta-feira passada, logo depois do desaparecimento do Boeing 777 da Malaysia Airlines, um oficial russo encarregado por Moscou de dar ajuda aos separatistas ucranianos, jubilante, postou durante algumas horas apenas o registro de mais um avião abatido. O oficial julgava tratar-se de um An-26 — Antonov turboélice de transporte de tropas e carga — da Força Aérea da Ucrânia. Não era. O avião abatido foi o Boeing 777 com quase 300 civis inocentes de várias nacionalidades a bordo. Na véspera, quarta-feira 16, os separatistas tinham celebrado na internet a derrubada de um Su-25 ucraniano. Esse anúncio continua lá. O relativo ao An-26 sumiu rapidamente. Foi a primeira tentativa dos russos e seus aliados na Ucrânia de apagar a marca do crime.

Felizmente, no mundo de hoje, as nações contam com redes de prevenção de grandes guerras bem mais eficientes do que as existentes no século passado, quando nas duas deflagrações bélicas mundiais somadas morreram quase 80 milhões de pessoas. Mas, apesar de todos os mecanismos de segurança atuais, pode-se dizer sem muita margem de erro que a derrubada do Boeing 777 civil na região fronteiriça entre a Ucrânia e a Rússia, na semana passada, é a mais grave ameaça à paz mundial neste século. "A indignação que eu sinto neste momento não pode ser descrita com palavras", disse Barack Obama, na última sexta-feira. O presidente americano só não construiu a frase responsabilizando diretamente Moscou pelo atentado. Nem precisava, pois Obama, valendo-se dos eufemismos e despistes de que a linguagem diplomática se nutre, disse a mesma coisa de outra maneira ao aprofundar ainda mais as sanções econômicas à Rússia que a Casa Branca havia decretado antes do disparo letal do míssil.

No epicentro dessa zona de morte e instabilidade encontra-se Vladimir Putin, o presidente russo, que usa o expansionismo como forma de propaganda política interna e, assim, vem conseguindo índices elevados de apoio popular. Na semana passada, enquanto o v mundo assistia atônito ao aparecimento de uma prova atrás da outra de que os russos tinham envolvimento direto na operação que matou quase 300 passageiros inocentes, a taxa de aprovação de Putin batia seu recorde histórico, com 83%. Adoração interna e desaprovação externa é uma receita desastrosa. Os líderes que enveredam por esse caminho oferecem perigo ao seu povo e ao mundo.

Foto: Dmitry Lovetsky / Associated Press

Um homem cobre um corpo com uma folha de plástico perto do local de um avião de passageiros Malaysia Airlines caiu perto da aldeia de Rozsypne, Ucrânia

Quando os corpos foram encontrados despedaçados no chão na Ucrânia, Putin acabava de chegar a Moscou, vindo do Brasil, onde participou de uma cúpula do grupo dos Brics — Brasil, Rússia, índia, China e África do Sul. Na segunda-feira 14, a presidente Dilma Rousseff encontrou-se com Putin depois da reunião e disse: "Somos reconhecidos por nossa atuação autônoma no plano internacional em favor de um mundo mais justo, mais próspero e pacífico". Resta saber agora como os presidentes dos países reunidos sob a sigla Brics reagirão a essa tragédia. Como enfatiza a Carta ao Leitor desta edição, eles não podem simplesmente ignorar o massacre de civis patrocinado por um país-membro: "Se os integrantes do grupo dos Brics fingirem que não viram o crime e passarem a mão na cabeça do companheiro Putin, estarão se condenando ao fracasso ético e moral, justamente o que destrói as chances de sucesso cm todos os outros campos".

Em março, Putin enviou soldados mascarados e sem distintivo no uniforme para a Península da Crimeia, parte da Ucrânia. Os "homenzinhos verdes", como ficaram conhecidos, expulsaram soldados dos quartéis, ocuparam prédios públicos e canais de televisão. Putin dizia que não tinha participação na empreitada. Ainda assim, anexou a Crimeia.

No fim de março, deu medalhas aos que participaram da ação. Simultaneamente, milhares de soldados foram enviados pela Rússia para o leste da Ucrânia. O objetivo era conseguir mais um naco de território ou, na impossibilidade disso, dificultar ao máximo que o país seguisse o caminho bem-sucedido de outros Estados europeus, que saíram da esfera soviética, abraçaram a democracia e o livre mercado e se distanciaram da autocracia e do estatismo russo. Os Estados Unidos e a Europa impuseram sanções econômicas para punir Putin pelo avanço à margem da lei internacional. O efeito foi nulo.

Foto: Dmitry Lovetsky / Associated Press

Pessoas caminham entre os escombros no local do acidente do avião abatido por míssil na Ucrânia

O que farão de concreto agora que a derrubada do avião da Malaysia Airlines vai se tornando impossível de escamotear? "Qualquer controlador de voo treinado sabe distinguir na tela do radar um avião civil de um militar", diz o engenheiro sueco Mikael Robertsson, fundador do site FlightRa-dar24, que acompanha o tráfego aéreo comercial ao redor do planeta. O sistema russo de mísseis Buk é dotado de radar e receptor de sinais de transponder, que diferenciam claramente os tipos de aeronave. "Putin estava feliz no Brasil. Ele está claramente usando a América Latina como uma frente contra os Estados Unidos", diz a cientista política ucraniana Lilia Shevtsova, do Carnegie Endowment, em Moscou. Aos seus amigos tropicais agora só restam duas opções: agem por princípio e isolam Putin ou se rendem ao pragmatismo e entram em uma guerra que não é deles.


*Acrescentamos subtítulo, foto e legenda a publicação original

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