3 de jul. de 2013

Do Brasil à Turquia, uma revolução da classe média

ESTADOS UNIDOS - Opinião
Do Brasil à Turquia, uma revolução da classe média
Em artigo publicado no Wall Street Journal, o cientista político americano Francis Fukuyama afirma que “para essas pessoas, não é suficiente que a presidente Dilma Rousseff tenha sido ela mesma uma ativista de esquerda presa pelo regime militar durante os anos 70 e seja hoje líder do Partido dos Trabalhadores. Elas acham que o próprio partido foi tragado pela lama de um "sistema" corrupto", como revelou o recente escândalo do Mensalão, e agora contribui para a ineficácia e a inércia do governo.”

Foto: Reuters

BRASIL 22 de junho de 2013 | Manifestantes corrupção protesto e serviços públicos pobres.

Postado por Toinho de Passira
Texto de Francis Fukuyama*
Fontes: The Wall Street Journal, BBC Brasil

Durante os últimos dez anos, Brasil e Turquia foram muito celebrados como estrelas do desempenho econômico — mercados emergentes com uma influência crescente no palco internacional. Mas nos últimos três meses ambos os países vêm sendo paralisados por imensas manifestações que expressam insatisfação com o desempenho dos seus governos. O que está acontecendo? Será que outros países vão sofrer agitações semelhantes?

O tema que une os eventos recentes no Brasil e na Turquia, bem como a Primavera Árabe de 2011 e os contínuos protestos na China, é a ascensão da nova classe média global. Em todos os lugares em que emergiu, a moderna classe média causou fermentação política, mas só raramente ela foi capaz, sozinha, de provocar mudanças políticas duradouras. Nada que temos visto recentemente nas ruas do Rio de Janeiro ou Istambul indica que esses casos vão ser uma exceção.

No Brasil e na Turquia, assim como ocorreu antes na Tunísia e no Egito, as manifestações políticas vêm sendo lideradas não pelos pobres, mas por pessoas jovens com níveis de educação e renda acima da média. Elas são adeptas da tecnologia e usam as redes sociais, como Facebook e Twitter, para divulgar informações e organizar protestos. Mesmo aquelas que vivem em países democráticos se sentem alienadas pela elite política governante.

No caso da Turquia, elas se opõem às políticas de desenvolvimento a qualquer preço e às maneiras autoritárias do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan. No Brasil, elas se opõem a uma elite arraigada e altamente corrupta que alardeou projetos glamorosos como a Copa do Mundo e a Olimpíada do Rio, mas não consegue proporcionar serviços públicos básicos como saúde e educação.

Para essas pessoas, não é suficiente que a presidente Dilma Rousseff tenha sido ela mesma uma ativista de esquerda presa pelo regime militar durante os anos 70 e seja hoje líder do Partido dos Trabalhadores. Elas acham que o próprio partido foi tragado pela lama de um "sistema" corrupto, como revelou o recente escândalo do Mensalão, e agora contribui para a ineficácia e a inércia do governo.

Foto: Agência Europeia Pressphoto

TURQUIA 22 de junho de 2013 | Um manifestante segura uma bandeira na Praça Taksim, em Istanbul.

O mundo dos negócios vem falando sobre a ascensão de uma "classe média global" por pelo menos dez anos. Um relatório de 2008 do banco Goldman Sachs definiu esse grupo como aqueles com renda anual entre US$ 6.000 e US$ 30.000 e previu que ele chegaria a cerca de dois bilhões de pessoas até 2030. Um relatório de 2012 do Instituto para Estudos de Segurança da União Europeia, usando uma definição mais ampla de classe média, projetou que o número de pessoas nessa categoria aumentaria de 1,8 bilhão em 2009 para 3,2 bilhões em 2020 e 4,9 bilhões em 2030 (de uma população mundial projetada em 8,3 bilhões). O grosso desse crescimento vai ocorrer na Ásia, principalmente na China e na Índia. Mas todas as regiões do mundo vão participar da tendência, inclusive a África, que o Banco Africano de Desenvolvimento estima já ter uma classe média de mais de 300 milhões de pessoas.

As empresas estão com água na boca diante da perspectiva de uma classe média emergente porque ela representa um grande grupo de novos consumidores. Analistas e economistas tendem a definir a situação da classe média em termos simplesmente monetários, rotulando as pessoas como classe média se elas integram a faixa média de distribuição de renda dos seus países ou têm um consumo acima do nível de subsistência dos pobres.

Mas a situação da classe média é melhor definida pela educação, ocupação e bens possuídos, que têm uma influência muito maior na previsão do comportamento político. Estudos feitos em diversos países, incluindo pesquisas recentes do instituto Pew e a Pesquisa Mundial de Valores da Universidade de Michigan, mostram uma correlação entre níveis mais altos de educação e uma valorização maior pelas pessoas da democracia, liberdade individual e tolerância para com estilos de vida alternativos. As pessoas da classe média não querem somente segurança para suas famílias, mas opções e oportunidades para si próprias. Aqueles com nível superior completo ou que cursaram por alguns anos a universidade têm uma probabilidade muito maior de estarem informados sobre eventos em outras partes do mundo e de se conectarem com pessoas de classes sociais semelhantes no exterior através da tecnologia.

As famílias que possuem ativos duráveis como uma casa ou apartamento têm um interesse muito maior em política, já que essas são coisas que o governo poderia tirar delas. Como é geralmente a classe média que paga impostos, as pessoas têm um interesse direto em tornar o governo responsável. Ainda mais importante é que os novos membros da classe média têm uma probabilidade maior de serem levados a agir pelo que o cientista político Samuel Huntington chamou de "a lacuna": ou seja, a incapacidade da sociedade de satisfazer as expectativas crescentes por avanços econômicos e sociais. Enquanto os pobres se debatem para garantir sua sobrevivência diária, a decepcionada classe média é muito mais propensa a se engajar em ativismo político para conseguir o que quer.

Essa dinâmica ficou evidente na Primavera Árabe, em que as rebeliões que derrubaram regimes foram lideradas por dezenas de milhares de pessoas jovens e relativamente bem educadas. Tanto a Tunísia quanto o Egito formou um grande número de pessoas nas suas universidades durante a última geração. Mas os governos autoritários de Zine El Abidine e Hosni Mubarak foram clássicos regimes de capitalismo clientelista, nos quais as oportunidades econômicas dependiam grandemente das conexões políticas. Nenhum desses países, de qualquer modo, teve um crescimento econômico suficiente para dar emprego a uma população jovem cada vez maior. O resultado foi a revolução política.

Foto: European Pressphoto Agency

EGITO | Egípicios protestam em junho contra o presidente Morsi na praça Tahir, no Cairo.

Nada disso é um fenômeno novo. As revoluções francesa, bolchevique e chinesa foram todas provocadas por descontentamento de pessoas de classe média, mesmo que seu desfecho final fosse mais tarde afetado por camponeses, trabalhadores e pobres. Na Primavera dos Povos, em 1848, praticamente todo o continente europeu eclodiu numa revolução, um produto direto do crescimento da classe média europeia nas décadas anteriores.

Embora manifestações, rebeliões e, ocasionalmente, revoluções sejam tipicamente lideradas por membros recém-chegados à classe média, esta raramente consegue provocar sozinha mudanças políticas de longo prazo. A razão disso é que a classe média nunca representa mais que uma minoria da sociedade de países em desenvolvimento e é ela mesma internamente dividida. A menos que ela possa formar uma coalizão com outras partes da sociedade, seus movimentos quase nunca acarretam mudanças políticas duradouras.

Foi assim que os jovens manifestantes de Tunis ou da Praça Tahrir, no Cairo, tendo causado a queda dos seus respectivos ditadores, fracassaram em dar sequência ao movimento com a formação de partidos políticos que fossem capazes de disputar eleições nacionais. Estudantes, em particular, não têm ideia de como engajar os camponeses e a classe trabalhadora para criar uma coalizão mais ampla. Já os partidos islâmicos (o Ennahda, na Tunísia, e a Irmandade Muçulmana, no Egito), tinham, ao contrário, uma base social na população rural. Durante anos de perseguição política, eles aprenderam a mobilizar seus seguidores menos educados. Como resultado, triunfaram nas primeiras eleições depois da queda dos regimes autoritários.

Destino semelhante possivelmente aguarda os manifestantes da Turquia. O primeiro-ministro Erdoğan continua popular fora das áreas urbanas e não hesitou em mobilizar membros do seu próprio Partido da Justiça e do Desenvolvimento (o AKP) para enfrentar seus opositores. A classe média da Turquia, além disso, está ela própria dividida. O notável crescimento econômico do país nos últimos dez anos vem sendo alimentado em grande parte por uma nova classe média, conscienciosa e altamente empreendedora, que tem apoiado fortemente o AKP de Erdoğan.

Esse grupo social trabalha duro e poupa dinheiro. Ele exibe muitas das mesmas virtudes que o sociólogo alemão Max Weber associou ao Cristianismo Puritano dos princípios da Europa moderna, que ele alega ter sido a base para o desenvolvimento do capitalismo na região. Os manifestantes urbanos da Turquia, em contraste, continuam seculares e ligados aos valores modernistas dos seus pares na Europa e na América. Esse grupo enfrenta não somente uma dura repressão de um primeiro-ministro com instintos autoritários, mas também as mesmas dificuldades em forjar laços com outras classes sociais, dificuldades essas que minaram movimentos semelhantes na Rússia, Ucrânia e outros países.

A situação do Brasil é bem diferente. Os manifestantes brasileiros não enfrentarão uma dura repressão do governo de Dilma Rousseff. O desafio, em vez disso, será evitar a cooptação no longo prazo pelos representantes enraizados e corruptos do sistema. Ser de classe média não significa que a pessoa vai automaticamente apoiar a democracia ou tentar limpar o governo. De fato, uma grande parte da classe média brasileira mais velha trabalhou no setor público, onde ela era dependente da patronagem política e do controle do Estado sobre a economia. As classes médias no Brasil, e em países asiáticos como a China e a Tailândia, apoiaram governos autoritários quando isso pareceu ser a melhor maneira de garantir seu futuro econômico.

O recente crescimento econômico do Brasil produziu uma classe média diferente e mais empreendedora, emanada do setor privado. Mas esse grupo poderia seguir seus próprios interesses econômicos em duas direções possíveis. De um lado, a minoria empresarial poderia servir de base para uma coalizão de classe média que procurasse reformar o sistema político do Brasil como um todo, tentando fazer com que os políticos respondam por seus atos e mudar as regras que possibilitam o capitalismo clientelista. Foi isso que aconteceu nos Estados Unidos durante a Era Progressista, quando uma ampla mobilização da classe média conseguiu apoio para uma reforma do setor público e o fim do sistema patronal do século XIX. De modo alternativo, membros da classe média urbana poderiam dissipar suas energias em distrações como identidade política ou serem individualmente comprados por um sistema que oferece grandes recompensas para as pessoas que aprendem a navegar os trâmites do poder.

Foto: European Pressphoto Agency

TUNÍSIA | Milhares de manifestantes protestam em Tunis, em fevereiro de 2011.

Nada garante que o Brasil vai seguir um caminho reformista na esteira dos protestos. Vai depender muito da liderança. A presidente Rousseff tem uma grande oportunidade de usar as manifestações como uma ocasião para lançar um sistema de reforma mais ambicioso. Até agora, ela tem se mostrado muito cautelosa sobre até que ponto está disposta a ir contra o velho sistema, cerceada pelas limitações impostas pelo seu próprio partido e coligação política. Mas assim como o assassinato do presidente americano James A. Garfield, em 1881, por um ressentido postulante a um cargo oficial virou o estopim de uma ampla gama de reformas para limpar o governo, o Brasil hoje também poderia usar os protestos para enveredar por uma rota muito diferente.

O crescimento econômico mundial ocorrido desde os anos 70 — que quadruplicou a produção econômica global — redistribuiu as camadas sociais ao redor do mundo. As classes médias nos chamados "mercados emergentes" são hoje maiores, mais ricas, melhores educadas e mais conectadas tecnologicamente do que nunca na história.

Isso tem consequências imensas para a China, cuja população de classe média chega agora às centenas de milhões e constitui talvez um terço do total. Essas são pessoas que se comunicam pelo Sina Weibo — o Twitter chinês — e se acostumaram a expor e reclamar da arrogância e duplicidade do governo e do partido de elite. Elas querem uma sociedade mais livre, embora não esteja claro se querem uma democracia de um voto por pessoa no curto prazo.

Esse grupo vai ficar sob uma pressão particular na próxima década, enquanto a China se esforça para se elevar de uma situação de renda média para renda alta. O ritmo do crescimento econômico já começou a diminuir nos últimos dois anos e vai inevitavelmente reverter para um nível mais modesto à medida que a economia do país amadurece. A máquina de empregos industriais que o regime criou desde 1978 não vai mais satisfazer as aspirações da sua população. A China já forma nas suas universidades cerca de seis a sete milhões de profissionais por ano, cujas perspectivas de emprego são menos brilhantes do que as dos seus pais da classe trabalhadora. Se alguma vez houve uma lacuna entre expectativas em alta crescente e uma realidade decepcionante, ela vai emergir na China nos próximos anos, com vastas implicações para a estabilidade do país.

Na China, como em outras partes do mundo em desenvolvimento, a ascensão da classe média ressalta o fenômeno descrito por Moises Naím, do centro de estudos Carnegie Endowment, como o "fim do poder". As classes médias vêm sendo as linhas de frente da oposição contra os abusos do poder, seja em regimes autoritários ou democráticos. O desafio para elas é tornar seus movimentos em mudanças políticas duradouras, expressas na forma de novas regras e instituições. Na América Latina, o Chile vem sendo a estrela do crescimento econômico e da eficácia de um sistema político democrático. Ainda assim, nos últimos anos houve uma explosão de protestos de estudantes do ensino médio, que apontaram as falhas no sistema de educação pública do país.

A nova classe média não é apenas um desafio para os regimes autoritários ou para as novas democracias. Nenhuma democracia estabelecida deve acreditar que pode relaxar sobre seus louros, simplesmente porque realiza eleições e tem líderes populares. A classe média fortalecida pela tecnologia vai ser altamente exigente com seus políticos.

Os EUA e a Europa estão passando por uma fase de crescimento lento e desemprego alto, que para os jovens em países como a Espanha já chegou a 50%. No mundo rico, a geração mais velha também traiu os jovens ao deixar para eles um endividamento elevado. Nenhum político dos EUA e da Europa deve olhar com complacência para os eventos se desdobrando nas ruas de São Paulo e Istambul. Seria um grave erro pensar: "Não há como isso acontecer aqui."


*FRANCIS FUKUYAMA é um nipo-estadunidense, filósofo, economista, cientista político e acadêmico do Instituto Freeman Spogli para Estudos Internacionais da Universidade de Stanford. Ficou conhecido pelo livro "O Fim da História e o Último Homem" ("The End of the History and the Last Man", 1992). Seu mais recente estudo publicado é o livro "As Origens da Ordem Política: Dos Tempos Pré-Humanos até a Revolução Francesa", Editora Rocco, 2013
Uma versão deste artigo apareceu 29 junho de 2013, na página C1 na edição do The Wall Street Journal EUA, com o título: The Middle-Class Revolution.

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